sábado, dezembro 30, 2006

Escutar os outros (4)

The most beautiful thing we can experience is the mysterious. It is the source of all true art and all science. He to whom this emotion is a stranger, who can no longer pause to wonder and stand rapt in awe, is as good as dead: his eyes are closed.

Albert Einstein

quarta-feira, dezembro 27, 2006

Narrativas (5)

1. Hoje uma reunião especial de família. Conversámos sobre o amanhã que será novamente duro de aguentar. Lembrámo-nos daquela primeira vez há já um ano e sete meses. Sofremos imenso com a vinda indesejada de um carcinoma que nos mobilizou a todos qual exército em estado de alerta, de prevenção. Permitimos que um maligno nos atormentasse. Mas jamais nos demoveu da confiança em Deus, cujos desígnios são insondáveis. Para quem não crê, nunca entenderá esta nossa serenidade com tumor e temor. Dizemos pois, do tumor à esperança... com fé!

2. Um dia inteiro no Hospital, desde as 09h30. Acompanho-o para mais uma cirurgia depois de ter sido detectado um carcinoma. Inicialmente, mostrava-se calmo. Com o decorrer das horas, vai sendo notória a ansiedade em crescendo. Os receios de ser detectado mais do que já se sabe, manifestam-se sob a forma de perguntas retóricas. A perplexidade sobre o resultado de uma tal intervenção médica vai substituindo o riso por um olhar cada vez mais fixo num horizonte abstracto. Manifesta-se cada vez mais apreensivo e já não suporta tanta espera, pois são já 16h30. De repente, entra no quarto um enfermeiro de serviço ao “talhante”, com uma maca sobre rodas e chama pelo doente. Deitado sob um lençol branco, a caminho do bloco operatório, olha-me e diz - «Agora é que é...!». Coloquei a minha mão direita na sua cabeça e sorri-lhe, acenando a cabeça como quem diz - «Não temas. Espero aqui por ti.» E esperei no quarto, em silêncio, orando por ele, conversando com Deus a propósito de tudo. Eram 19h30 e uma enfermeira veio informar-me de que a operação foi bem sucedida e ele estava agora no recobro. Acrescentou ainda que o médico cirurgião viria para falar comigo. Fiquei aguardando. Agora estava eu ansioso. Desejava saber o que o médico teria visto por dentro dele, martirizado por uma terrível surpresa que atentava contra a sua qualidade de vida. Ele nunca entendeu a perda da vida como uma desgraça, pois a sua fé conduz os seus passos para a eternidade com Deus. Mas enquanto viver neste mundo, do lado de cá da passagem, luta por uma existência qualificada, gostosa e o menos dorida possível. Voltei a casa com ele no pensamento e no coração da amizade.

3. Desde ontem, a noite toda, mais a manhã até às 12h00 no Serviço de Cuidados Intensivos (no Hospital falavam-me em “recobro”), passou sem dores e sem dormir. Faltou-lhe o habitual comprimido que o sossega sonolento. Fui visitá-lo quase de imediato quando soube que já estava no seu quarto. Encontrei-o sorridente, a voz um pouquinho rouca, os olhos vivaces num rosto limpo, deitado, com um lençol apenas a tapar-lhe o corpo, qual corporal estendido sobre o altar para Aquele que se entregou por nós, o Salvador, Jesus Cristo. Vi dois drenos pelos quais escorriam sangue e uma água que parecia leitosa. Um penso enorme cobria grande parte do seu pescoço, o lugar de intervenção do “talhante”. Disse-me de imediato que não tinha dores e estava bem, apesar de tudo. Gostou imenso das flores que lhe ofereci. Entre elas, um girassol, com que se identifica, sempre voltado para Deus. Conversámos sobre as perspectivas de sair dali no dia seguinte e o tratamento a continuar. Chegou o médico, observou-lhe os drenos, viu por detrás do enorme penso, e soltou secamente - «Isto está bom. Coloque gelo sobre o corte, e amanhã já o mando para casa. Esteja sossegado, pois está tudo bem. Quanto ao que lhe retirámos, vai para análise. Numa observação macroscópica, julgo que é apenas aquele gânglio positivo. Mas só depois da análise microscópica é que saberemos com certeza o que encontrámos. Para já, estou confiante que limpámos tudo e que não deixámos lá nada de mal. Mas... depois veremos! Até amanhã.» Olhámo-nos e entendemo-nos sem palavras. Cúmplices no temor por causa do tumor e companheiros de uma mesma esperança por causa da única fé. No dia seguinte veio comigo para casa.

Frei Luís de Oliveira