quarta-feira, julho 18, 2007

Reflexão (3)

Da Profa. Dra. Ana Cristina de Sá (Enfermeira, Psicóloga, Pedagoga), do Núcleo de Bioética do Centro Universitário São Camilo, de São Paulo, recebemos a seguinte história.


WALDEMIR

Ninguém podia entender...
Por que é que Waldemir não morria ?
Com 9 anos de idade ele corria, subia em árvores, nadava em rios, brincava de pular cela, pega-pega, empinar pipa, bolinha de gude, bafo...
Com 10 anos ele caiu de cama. Um tumor muito maligno chamado Wilms o derrubou. Acabou a brincadeira... Não tinha mais jeito. Quando ele chegou ao hospital para ser internado já estava tudo tomado... Somente o que restava era esperar o fim de Waldemir.
Ele parecia um morto-vivo: a cor da pele estava acinzentada; os olhos sem brilho e sem vida, semi-abertos, somente deixavam aparecer o branco da esclerótica; a pele estava enrugada, pois Waldemir era só pele e ossos. Seu corpinho ficou frio, frio, pois tinha que permanecer numa tenda de oxigênio. A respiração era agônica, lenta, arrastada...
O tumor fez seu abdome ficar grande. Ao ser aberto na cirurgia (e fechado a seguir, pois nada podia ser feito) estava infectado. Waldemir passou a exalar então dois odores: o da morte e o da infecção.
Aí me perguntava: por que é que Waldemir não morre ?
A mãe de Waldemir ali, ao seu lado, também me perguntou: por que é que Deus “num” leva ?
Num esforço de reflexões frente àquele quadro triste e que estava matando a todos (não somente Waldemir) dia-a-dia, uma “voz interna” sussurrou ao meu ouvido: “- Vá até lá ! Pergunte se falta ele ver alguém”.
- Mãe... tem alguém que ele goste assim... muito ! E que ele não tenha ainda visto desde que ficou mais doente ?
A mãe pensou e uns segundos depois respondeu: “- Tem a vó dele. É a pessoa que ele mais gosta e ela também é muito ligada ao menino. Ela que criou ele. Foi ele ficar doente e ter que vir prá cidade prá ela também ficar de cama”.
- Tem jeito de trazer a avó até aqui ?
- ‘Tem jeito não... Nóis é do Mato Grosso... Num tem como pagar a passagem.’
Vaquinhas daqui e dali, listas de contribuições, uma super força da assistente social, enfermeiras, pessoal de enfermagem, médicos, pessoal da limpeza, da nutrição, ascensorista... Todo mundo !
- Tá aqui, mãe: o dinheiro das passagens de ida e de volta e mais um bocado prá pagar a hospedagem. “Tráz” a vó prá ver o Waldemir, tá ? E rápido !
Eram umas 2:30 da madrugada, uns três dias depois... O telefone tocou:
- Alô, aqui é do Registro. Tem uma senhora aqui dizendo que é a avó de um paciente internado... ahn... Waldemir...
- Manda subir já !!!
- Mas tá fora do horário de visita e...
- Eu autorizo. Assumo a total responsabilidade.
- Não quero rolo prá cima de mim.
- Se tiver rolo vai ser prá cima de MIM. Pode deixar. Manda subir e vê se vai rápido, OK ? É um caso de vida ou morte.
- Tá bom. Vou colocar aqui que foi você quem autorizou.
- Tenho cobertura até do Papa. Vai firme que o Criador tá a nosso favor nessa.
A avó de Waldemir chegou. Estava esperando por ela no corredor, em frente ao elevador. O elevador abriu as portas. Ela: simples, vestido de algodão florido, meias de lã, lenço na cabeça, óculos antigos, grossos e gastos, um sapato daqueles velhos, solas gastas, quase um chinelo.
- O Waldemir tá esperando a senhora. Olha... ele está muito mal... parece que não passa de hoje e...
- Pode deixar, filha... Eu sei como está o meu neto. Eu venho sentindo como ele está há muitos dias...
- Sentindo... como assim ?
- Eu sinto... só isso. Coisa de vó. Um dia cê vai entender, minha fia...
Ela entrou na enfermaria como se soubesse exatamente o que tinha a fazer, determinada, com um objetivo previamente traçado.
Foi em direção ao garoto que, a essa altura do campeonato nem abrir os olhos abria. Todos pensávamos que ele já estivesse em coma, pois não respondia a ordens verbais e muito pouco a outros estímulos.
- Fio... Aqui é a vó. Vim abençoá ocê prá poder ir em paz pros braços de Deus... Vai em paz, fio...
Waldemir abriu os olhos (de repente com vida - uma vida tão intensa quanto eu nunca havia visto naqueles olhos), virou a cabeça na direção da avó, sorriu (um sorriso de uma orelha a outra), apertou a mão dela e, ainda com o sorriso estampado no rosto, parou. Foi encontrar-se com o Criador.
Waldemir estava esperando a avó para se despedir deste mundo.
Por quê não percebemos isso antes ? Será que ficamos embotados ao nos preocuparmos tanto com as “possibilidades científicas controladas” que nos esquecemos de notar as coisas realmente importantes (e nada controladas cientificamente), em termos humanos ?
A serviço de quem estamos no hospital trabalhando ?
Pelo menos foi maravilhoso perceber o esforço de toda a equipe para reunir o dinheiro para trazer a avó de Waldemir.
Como acabou a história: ela nos agradeceu, beijou a face de cada um dos que estavam no quarto na hora (um médico residente, uma auxiliar de enfermagem e eu), despediu-se e foi embora, num passo lento e arrastado pelo corredor, em meio à escuridão da noite. A mãe de Waldemir saiu atrás dela e perguntou se não queria ir com ela para a pensão onde estavam hospedados. Ela disse que não. Havia um ônibus de volta em quatro horas e ela iria voltar.
Sua missão estava cumprida. Nada mais tinha a fazer aqui.
A última coisa que vi foi a porta do elevador fechando-se e aquele rosto forte, com muitas rugas, moreno, marcado pelo sol que o castigou pelos anos a fio de trabalho na roça. Um rosto forte e, ao mesmo tempo, seguro de si, experiente, meigo e cheio de fé: uma fé inabalável nos desígnios de Deus. Uma fé invejável !
Enfermeira, médico, auxiliar: lágrimas contidas nos olhos vermelhos. Mãe chorando baixinho frente ao inevitável.
Avó: nem uma lágrima externa.
Mais um dos anjos que encontrei em meu caminho.

Separata do livro: SÁ, Ana Cristina de, O cuidado do emocional em saúde. 2.ed. São Paulo: Robe, 2003.


Obrigada, Ana Cristina!

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7 comentários:

Anónimo disse...

Como se costuma dizer, avó é mãe duas vezes. A minha avó, e só ela, transmitia-me paz e confiança como ninguém mais.
Um bem haja a esta enfermeira pelo discernimento ao entender a importância do respeito pela última vontade do menino e ao ultrapassar todas as imposições que poderiam impedir que esse desejo se concretizásse. E o menino morreu em paz.
Sinto que a minha avó ainda continua a ser a minha estrela que me guia e proteje. Ela também era uma pessoa simples aparentemente. Mas no seu interior: alma e coração, compreensão, amor, eram enormes.
E realmente quando não se chora, isso não quer dizer que não haja um enorme sofrimento interior; e esta avó apesar de saber que para o seu neto o melhor seria a morte, ele estava à espera da avó e ajudá-lo a morrer causou-lhe decerto um grande sofrimento.

Anónimo disse...

Como enfermeiro, penso que os profissionais de saúde devem ser humildes. Apesar do rigor dos nossos saberes, ainda há muito que não sabemos... ou que não queremos ver!

Os cuidados aos doentes em fim de vida devem ser encarados de uma forma semelhante aos cuidados que prestamos a quem não está a morrer. Não há cuidados de Enfermagem de primeira ou de segunda.
Criar o ambiente possível e adequado à despedida é uma intervenção de enfermagem, que ainda esteja repleta de compaixão, não se deve fazer só por este motivo. Não é um favor que se faz ao outro. Ser profissional implica estabelecer prioridades e aqui provavelmente, este é o cuidado mais prioritário...

Maria da Luz disse...

muitas vezes vi pacientes estarem dependentes de alguém para dizerem o ultimo adeus.
ou para se despedirem de alguém de quem gostam

Anónimo disse...

Morrer sozinho deve ser terrível.
Este menino morreu rodeado de amor e carinho, como aliás é imperativo que aconteça com toda a gente, se essa for a vontade da pessoa como é lógico.
Tem realmente que existir da parte dos profissionais de saúde um "não sei quê" difícil de definir, mas que marca a diferença e os enfermeiros são por norma exímios nessa missão, como ninguém.

Anónimo disse...

O real é sempre a melhor lição...Só vivendo se aprende, só amando muito se consegue sorrir, mesmo com a alma dilacerada.

Anónimo disse...

Pessoalmente tenho dificuldade em saber a atitude certa ao deperar-me com uma situação destas;
uma noite, um menino muito mal,em fim de vida, praticamente não reactivo mas em ventilação espontânea,um médico a prolongar-lhe a vida, as oscilações dos parâmetros vitais mas que pareciam melhorar com o contacto da mãe, a mãe a pedir para fazerem tudo o que fosse possível por ele, o desespero da mãe quando no final da noite lhe foi dito que já não havia nada a fazer e era preciso deixá-lo morrer; e nós com a pouca experiência que tinhamos tentamos apoiar esta mãe mas esse apoio ficou visivelmente aquém... nós não sabíamos se diziamos à mãe que já não havia possibilidade do menino recuperar pois nós também queríamos que ele recuperásse e não estavamos a aceitar que ele ia morrer, não sabiamos como falar com a mãe e que orientações haveríamos de dar-lhe para viver aquele momento. E o turno mudou e espero que quem ficou tenha conseguido fazer melhor.

Anónimo disse...

Eu simplesmente amo Ana Cristina, amo sua escrita... é maravilhosa... saudade de ouvir suas palestras